Through the Trees ♣ Aventura para Takane Shion e Lyon Waker

- Como sempre, você pegou muita comida - comentei para Haruka. Deveria ter, sei lá... comida para umas 5-6 pessoas na sacola que ele segurava. Nós nos sentamos em um banco e observamos a neve cair pelo patio deserto.

- Sim! Há muitas coisas novas na cantina, sem falar na maquina de vendas que colocaram - o menino disse, pescando alguma coisa lá de dentro. Melonpan, pelo o que eu pude adivinhar. Eu peguei um doce parecido da sacola e o examinei.

- Você vai conseguir comer tudo?

- ... eu não sei - pelo menos ele era sincero. Mesmo assim, sempre que eu saia com Haruka, me dava vontade de chorar e eu me sentia culpada. Alguns anos atrás, eu sabia bem pouco sobre a sua doença: as únicas informações que eu tinha era que a dele era bem pior que a minha e que um ataque poderia ser fatal.
Depois que eu havia descoberto que estávamos na mesma condição... bem, eu havia ficado bem irritada. A mesma doença. Aparentemente, as mesmas causas. Mesmo assim, ele poderia morrer a qualquer instante enquanto eu provavelmente tinha uma vida longa e feliz pela frente.

Bem, não tão feliz assim. Ao perceber que Haruka notará a expressão no meu rosto, eu desviei o olhar.

- Então... pegue o que você quiser! - ele comentou, sorrindo. Eu estava meio distraída, então demorei um pouco para perceber que ele falava comigo.

- Ahn... Ah! Ah, sim! - eu peguei um saco de balinhas de dentro da sacola e peguei uma bala de goma azul - Ei, amanhã... amanhã vamos nos encontrar na mesma sala como sempre, ok? Vamos nos sentar juntos, estudar juntos e conversar juntos, como sempre fizemos...

- Eu não posso prometer nada - ele me lembrou. Eu mordi o lábio e o encarei, irritada - Desculpa, Takane...

- Não diga isso nessa calma! - briguei com ele, irritada. Eu odiava aquilo: como ele podia simplesmente aceitar a morte, desse jeito - Ainda estamos vivos, não é? Podemos fazer alguma coisa!

Ele acariciou os meus cabelos. Eu estava corada de raiva, vergonha e frio, mas o encarava com uma determinação... bem, diferente. Da primeira vez que havíamos tido aquela conversa, eu havia chorado.
Não que a minha situação houvesse mudado muito desde então. Eu ainda era a mesma garotinha de antes.

Haruka sorriu.

- Takane, enquanto eu puder... enquanto eu puder, eu sempre estarei ao seu lado. Não pense no que vai acontecer quando eu não conseguir mais estar aqui, por favor.

Eu senti um aperto no coração naquele instante. Sinceramente, eu estava dividida: parte de mim queria socar aquele sorriso triste dele. Outra parte, queria abraça-lo como ele havia feito muitas vezes comigo e falar que aquilo não era o suficiente, que eu queria que o idiota ficasse ali para sempre.
Mas grande parte de mim queria simplesmente chorar. Eu abaixei a cabeça.
Se o mundo é um lugar como esse, então é melhor simplesmente... !



O telefone de Haruka deveria ter tocado pela milésima vez naquela manhã. Logo, eu cometeria um homicídio culposo e doloroso se o idiota não atendesse o telefone. Massageei a testa, tentando me acalmar.
Eu ia matar aquele cara.

O celular chamou até quase cair quando ele finalmente atendeu. Eu quase dei noticias animadoras para ele, do tipo "Ah, onde você está? Estou indo ai para te matar agora mesmo!", mas me contive.

- Bom-dia - consegui escutar a voz sonolenta dele. Bati a testa contra a parede.

- Onde você está? - voltando ao plano do assassinato...

- Ah, na cama, por q...

- HARUKA!

- Ah! Ah... eu estou acordado! Juro...! Zzz...

- SEU IDIOTA! - gritei, irritada - Francamente, era para já estarmos nas docas... se arrume e me encontre no portão!

Os planos eram para que eu e Haruka viajássemos hoje. Eu havia sugerido passarmos as nossas férias no colégio mesmo, mas a minha avó havia aparecido com aquelas duas passagens para o Caribe e meio que não havia como recusar, principalmente quando elas eram de graça e para comemorar meu aniversario.
Havia tido uma pequena guerra interna minha contra meus avós depois: eles eram absurdamente ricos e haviam se oferecido para pagar uma estadia em um resort de luxo para nós, mas eu havia recusado até a última fibra do meu ser. Ir para as Bahamas? Ok: estávamos no inverno e fora de temporada, as passagens eram baratas. Ficar no hotel mais luxuoso do lugar? Sem chances.

Por fim, acabamos alugando uma pequena casa na praia com quatro quartos por uma semana. Haviam mais algumas pessoas que iriam ficar no lugar, o que me fazia me sentir um pouco melhor: viver uma semana com Haruka me assombrava.

Olhando para o passado agora, talvez eu devesse ter recusado as passagens, ou aceitado o hotel luxuoso da minha avó. Talvez eu devesse ter acordado um pouco mais tarde. Tudo para perder aquela viajem.
Eu não tinha a minima ideia de como a minha vida mudaria na semana do meu aniversario.

Those who are no more exist

Eu... eu meio que odiava coisas solidas. Eu não tinha nenhuma certeza na vida: quais eram as forças com as quais eu brincava e servia de brinquedo? Quem era a minha família materna? Eu estaria viva amanhã?
E de certa forma, o que eu considerava mais importante... Haruka. Haruka estaria... vivo amanhã?

Um pequeno segredo que eu guardava era que eu não sabia qual era o dia do meu aniversario. Na realidade, era um motivo bobo eu comemorar naquele dia mas...
Eu não me lembro muito bem porquê, mas a razão era Haruka.

As docas eram um lugar pequeno, repleto de barcos e lanchas e com cheiro de peixe e maresia. Meu rosto estava coberto e eu estava corada com o frio que fazia, incomum até para o Novembro mais gelado. Havia um pequeno navio no ancoradouro também, mas de tamanho considerável caso fosse comparado aos demais.
Ignorando o peso da sacola que carregava com os meus pertences, corri até mais perto da água.

- O MAR! - exclamei involuntariamente quando chegamos. O vento frio afastou o capuz do meu rosto e a minha expressão deveria ser muito feliz ou muito patética, pois Haruka deixou escapar uma risada e ajeitou sua mochila nas costas. Eu me apoiei na cerca que separava o tablado onde estávamos do mar.

- Você realmente ama o oceano, não é, Takane? - ele perguntou, ficando ao meu lado nas docas. Estávamos tão próximos que os nossos braços roçaram um no outro. Eu corei.

- Não é exatamente amar... - eu fechei os olhos por um momento. Como eu descreveria aquilo? - Eu me sinto acolhida no mar. Não importa quem você é lá: é uma especie de batalha. E eu... eu ainda não entendi muito bem o que... o que é... - eu começava a corar, perigosamente. Haruka deu um sorrisinho e me encarou.
Percebi tarde demais que menos de cinco centímetros separavam os nossos rostos.

- Quer que eu te explique mais uma vez? - demoraram longos segundos para eu perceber que ele falava comigo. Meu coração estava estranho. Um misto de emoções se misturavam dentro de mim.
Sem pensar muito bem, eu me afastei.

Eu me lembrava vagamente que havia feito uma aposta com alguém. Você me chamaria de tola por apostar algo tão importante, mas eu nem sabia se a aposta era real. E vidas estavam em jogo.
A vida dele principalmente. Na época eu não entendia, mas agora...

- Hey, Haruka... - perguntei pela milésima vez desde aquele dia, algumas semanas atrás - O que é estar "apaixonado"?

- Eu estou seriamente desconfiado de você - ele comentou de jeito brincalhão mais uma vez. Na primeira e na segunda vez que eu havia perguntado, ele havia respondido normalmente, mas depois...
Aquele idiota!

- Eu não sei exatamente... eu não tenho certeza se eu já me apaixonei, então não sei direito, mas...

- Espera! - por que diabos eu estava corando tanto? - Como assim você não tem certeza? Como isso é possível?

- Ah... é porque eu já a vejo desse jeito a muito tempo e só recentemente comecei a suspeitar que estou apaixonado - ele explicou, rindo. Então Haruka ficou sério e começou a corar - Ela é uma amiga muito próxima e eu realmente estou em duvida e... bem, ela é... - eu o abracei antes que ele pudesse continuar.
Como resposta, o garoto afagou levemente os meus cabelos.
O meu coração batia acelerado. Arritmia, talvez?
Talvez eu tivesse coragem de falar alguma coisa. Naquele instante, o apito do navio tocou e nos separamos, corados.

Estava na hora de ir. A viajem levava cerca de cinco horas até Dublin, de barco. A partir de lá, pegaríamos o voo e em menos de meio dia, estaríamos em algum lugar perdido em meio ao oceano.



O avião havia decolado há alguns minutos.
Eu ainda não conseguia compreender como fomos parar na primeira classe.

Nós nos encaramos, sem conseguir falar nada. As cadeiras ficavam uma virada para a outra, de modo que era impossível não olhar para o rosto de Haruka.
Havia sido daquela maneira nas últimas seis torturantes horas. Eu sabia que era culpa minha: sempre que o menino tentava conversar, eu o ignorava ou dava algum jeito de acabar logo com a conversa.

Ele pegou a mochila que estava aos seus pés e revelou um bloco de desenho, além de alguns gizes de cera. Notei, também, Harusame em seu pulso.

Você quer desenhar?

Eu quase lhe bati, suspirando.
Ele realmente só pensava no melhor para todos.

Those who are no more exist

Aquele sentimento, de novo.
A primeira vez... a primeira vez fora com Jasmine, eu acho. Então a maior causadora fora Momo desde então. Sinceramente, eu não sabia o que era aquilo.

De acordo com Haruka, o termo certo era "ciúmes". Eu tinha alguma dificuldade para encarar assim: imaginava ciúmes como uma coisa diferente.
Eu suspirei e tirei da minha sacola os meus fones de ouvido. Eram bem velhos e gastos, mas o som era bom e eles eram bonitinhos.

Infelizmente, por melhor que fosse o isolante acústico, eu ainda podia ouvir a voz deles.

- Deviluke, o que... ? - Haruka tentava tira-la do colo, a sua maneira gentil. Eu nunca teria coragem de fazer algo como aquilo.
Então que droga fora aquela nas docas?

Uma amiga bem próxima... impossível. Eu não era a única amiga dele.
Mas ele era o meu único amigo.

Distraída, eu olhava a janela. As nuvens se agitavam, formando diversas criaturas. Vi um grupo [alcateia? Manada? Como eu posso chama-los?] de grifos voando, distraída.
Então senti alguém apertando os meus peitos.

- Chii-chan, Fii-tan, eu senti falta de vocês! - anunciou Momo, fazendo algo que definitivamente poderia ser considerado "abuso sexual". A pose dela... bem, ela havia se deitado sobre a mesa, ainda sentada sobre o colo de Haruka e mexia no meu pobre busto.
Me irritei.

- Deviluke-san... eu adoraria que você parasse de dar nomes para os meus peitos - comentei, irritada. Haruka estava sorrindo.

- Entendi, o da direita se chama Chii e o da esquerda se chama Fii - sério... o quão idiota, inocente e pervertido aquele garoto poderia ser? Eu não podia começar a mudar a minha opinião sobre ele que Haruka me vinha... com uma... dessas... - São belos nomes!

Eu joguei o iPod tão forte na cara dele que deixou uma maraca vermelha.

A pobre aeromoça que andava por perto entendeu errado o que estava acontecendo entre mim, Momo e Haruka. Vermelha, ela nos separou e deu um sermão sobre o que jovens deveriam e não deveriam fazer em um voo, principalmente na primeira classe.



As doze horas de voo foram um inferno.
O incidente com Momo e Lyon havia servido para amenizar os ânimos entre eu e Haruka, mas...

- Por que vocês estão descendo?
Surpreendentemente, eu havia esquecido que os dois não deveriam estar no mesmo voo ou sequer no mesmo país que eu e meu guardião. Nós dois paramos no desembarque, o menino com uma mão em meu ombro, em um gesto protetor.

A previsão era que as coisas ficassem feias.

Those who are no more exist

"Fugimos" é um termo meio exagerado.
Eu fugi, arrastando Haruka comigo, o mais rápido que pude após sairmos do avião. As nossas bagagens eram bem pequenas, até porque tínhamos poucos pertences. Enfiei ele em um ônibus e fomos até a cidade, onde era mais fácil pegar um táxi.

A viajem até a casa demorou um pouco, principalmente porque ela era meio afastado da cidade mais próxima. Mesmo assim, o lugar ficava perto de um hospital, o que era bom.

A construção de três andares ficava perto de uma floresta. Meus olhos brilhavam, observando a casa. Era um lugar maravilhoso: o tom amarelo era realmente lindo e eu sabia que Haruka apreciaria também. As varandas para frente da praia nos quartos davam uma sensação de liberdade. Ela era feita em um estilo que lembrava um pouco o europeio, mas era bem bonitinha.

[Apenas Administradores podem visualizar imagens]

- Você fica realmente fofa com essa cara - comentou Haruka, eu corei e desviei o olhar, ficando com uma expressão rude. Abri a casa: estava surpreendentemente limpa.

- Woah! - comentei, aliviada - Eu realmente jurei que passaríamos o dia inteiro arrumando esse lugar!

- Sorte nossa - o menino comentou, cruzando os braços. Eu sorri.
Que se dane o mundo. Estávamos sozinhos. Haruka estava comigo. Eu poderia ser feliz, sem ter que recorrer aquela parede que eu havia criado em cima de mim mesma.

- Você me deve um sorvete - lembrei, desconfiada - E está começando a feder. Vá tomar um banho. Vou arranjar um chá para nós ou coisa assim. Acho que podemos ficar no segundo andar, lá tem dois quartos e dois banheiros...

Ele assentiu e subiu para o andar de cima.
Joguei a minha mochila e meu casaco de qualquer jeito em cima do sofá e fui para a cozinha. "Cozinhar" não estava entre os meus maiores talentos, mas fazer chá era algo simples.

- Haruka, eu...

A bandeja de chá caiu no chão quando eu sai da cozinha.
Quem estava sentado no sofá não era o meu guardião.
Era Lyon Pheles.

Those who are no more exist

- Takane, o que... ?

Um menino seminu. Uma menina nua. Um idiota em tamanho natural. Eu não sabia se chorava, se corava ou ria da situação inteira.

Voltando alguns momentos no passado...


- Ah... Enomoto...

- Você invade a minha casa e pensa que pode fazer isso? - a minha expressão era perplexa. A vantagem das xícaras era que elas haviam rachado: poderia muito bem usa-las como arma.

Momo, a guardiã do menino, subiu a escada e bateu de leve contra a parede de vidro. Eu desviei o olhar: eramos meninas, mas mesmo assim outro corpo exarcado me dava vergonha, principalmente o de uma menina.

A má noticia? Bem, ela se despiu do vestido, ficando apenas com uma roupa de baixo que eu nunca teria coragem de usar.

- Toalha! - ela pediu e foi nesse instante que Haruka apareceu, apenas de bermuda e com uma toalha na cabeça na escada.

Lembra que eu tenho vergonha de olhar para pessoas molhadas? Bem, o motivo era aquele idiota. Vê-lo sem a camisa também despertava má recordações.

- Takane, o que... ? - demorou alguns segundos para ele perceber que Deviluke estava sem nada por cima do corpo e que Lyon também estava ali - Ah, desculpa, eu...

Era obvio que não sabia muito bem o que fazer. Então percebi que a bermuda era um traje de banho.
Bem, menos mal, eu acho. Más recordações, mesmo assim.

Lyon abriu a janela e jogou uma toalha para Momo. Ela se despiu e eu e Haruka parecíamos estar disputando para ver quem estava mais vermelho.

- Vamos sair daqui - sugeri. Ia limpar os cacos das xícaras, mas me cortei.

Ao som da minha pequena exclamação, meu guardião se exaltou.

Se a minha "doença" tivesse atacado no sentido "positivo" naquele instante, talvez eu pudesse ter entendido que havia acontecido.

Bem, apenas vamos dizer que Haruka escorregou. E eu estava bem em baixo da escada.
Ele caiu em cima de mim.

Those who are no more exist

No instante que Haruka caiu em cima de mim, eu esqueci como respirar.
Então me lembrei e lhe dei um soco no estomago, rolando para o lado.

- Fii! Chii! Vocês estão bem?

Uau... eu realmente tinha problemas com corpos nus. Eu era uma menina, mas as minhas vergonhas as vezes me faziam pensar se eu também não tinha um lado masculino.
Enfim, o que importa é que eu realmente corei com a vista que eu tinha de Momo. Haruka estava mais distante e em melhores condições que eu.

- Oe! Haruka! Proteção cara!
Quando eu contei a história desse dia para alguém... ah, cara. Eu fui chamada de tonta.
Demorou cerca de trinta segundos para eu perceber que aquilo tinha um sentido muito constrangedor. Se era possível, eu fiquei mais vermelha do que com a visão de Momo.

- Seu... ! - homicídio duplo e doloso? Bem, era o que provavelmente aconteceria. Em um gesto desesperado, Haruka agarrou o meu pulso.

- Espera, Takane... ! - me contrai com a dor quando ele tocou no ponto onde eu havia me cortado. Puxei rapidamente a mão para mim - Ah, você está sangrando!

- Isso não é nada - comentei, rudemente. Haviam outras pessoas ali, então eu havia erguido novamente as minhas defesas. Para provar o meu comentário, lambi o machucado. Quase recuei novamente com o gosto do sangue quente - Viu só?

Com a postura orgulhosa, subi a escada. Estava fedida, suja e cansada. Um banho era o que eu mais precisava no momento.

O segundo andar começava com um corredor com quatro portas. Abri a primeira e descobri ser o quarto de Haruka: ele já havia se encarregado de dar o seu toque pessoal ao lugar. Suas coisas estavam jogadas em um canto em uma "bagunça organizada" e rascunhos de desenhos já cobriam a escrivania.
Não que eu já tivesse entrado no quarto dele um dia. Eu apenas deduzia aquilo a partir da maneira que ele agia no dia-a-dia.

O comodo diretamente a esquerda era outro quarto, idêntico ao que Haruka havia se instalado. Sem ter muita coisa para sinalizar que eu o havia me apossado, eu joguei meus sapatos em um canto perto da cama e sai, indo a porta a minha frente.

Quase chorei de felicidade ao perceber que havia um ofurô.
Entenda: fui criada com hábitos japoneses e europeus. Mesmo assim, os banheiros e chuveiros me matavam. Eu gostava de ficar imersa na água quente das banheiras.

Dava muito mais tempo para pensar que uma ducha, por exemplo.

Ah, sim. A proposito, eu deveria ter começado a suspeitar da casa quando vi a banheira cheia de água quente, mas eu ainda estava querendo matar Pheles, logo esse importante detalhe escapou da minha percepção.

Comecei a tomar um rápido banho de água fria.

Enquanto isso, Haruka estava na praia.

Those who are no more exist

Ser atacada por um demônio pervertido do sexo feminino não está na minha lista de "Dez Melhores Coisas do Mundo".
Na realidade, aquilo parecia tão impensável até alguns momentos atrás que não se encaixava em nenhuma lista.

- Chii! Fii! Oi ♥

- Deviluke, que droga... ? - na realidade, eu não sei se falei direito. Minha cara estava parcialmente dentro d'água e minha boca cheia desta, o que limitava a minha fala.

Quando eu consegui acalmar a menina e me sentar direito, ela também havia se acomodado dentro da banheira.

Agradeci ao fato que eu não podia ver o corpo dela direito, mesmo estando nua. Acho que a mesma regra se aplicava a ela.

- Por que a fixação nos meus peitos? Eles não são nem grande coisa! - perguntei, irritada. Eu abracei os joelhos contra o corpo - Nem parecem os de uma menina, como fazem questão de lembrar. Talvez seja isso mesmo, eu sou um menino!

Certo, aquela parte era brincadeira. Momo pode confirmar.
Mesmo assim, eu me sentia daquela maneira alguns dias. Eu não conhecia a minha mãe. Ignorava o local do meu nascimento. Não sabia o dia que nascera. Não sabia se era um menino ou uma menina.

Talvez naquele instante, Haruka estivesse em uma situação melhor que a minha. Ou mais perigosa. Não havia diferença.

Na praia, Lyon o abordou.

- Ela é sempre tão violenta assim? - perguntou o demônio, a cabeça parcialmente tombada para o lado. Haruka repetiu o gesto e demorou alguns segundos para entender que falavam de mim.

- Ah, Ta-chan? Não, na maior parte do tempo ela é bem fofinha ♪♫ - ele comentou, alegre - Mentira, ela é assim quase o tempo todo. Mas ela realmente quer te matar.


Obrigada por me defender, Haruka. Foi de muita utilidade.

Those who are no more exist

Qual era o problema com aquelas pessoas?
Como reação, eu simplesmente consegui chutar Momo de modo que ela se afastasse. A intenção não era feri-la.

- Não!

Por acidente, a minha ferida se abriu e manchou a água de sangue. Eu sai da banheira, me abrigando em um canto do banheiro. Eu tremia. Meus olhos estavam cheios de lagrimas de vergonha. Meu rosto estava vermelho.

Me encolhia, tampando quase totalmente o meu corpo e dando atenção especial para a minha barriga.
Ela não havia visto aquela cicatriz... havia?

Enquanto Haruka... bem, enquanto isso, Haruka...

- Tá, mas diz aí, ela é boa de cama?
Se mostrava um idiota inocente maior do que eu pensava.

Em resposta ao sorriso sarcástico do menino, ele tombou o pescoço para o lado. Deu um sorriso sem entender e colocou as mãos atrás do pescoço.

- O que você quer dizer com isso?

Those who are no more exist

- Takane... Essa cicatriz...

E ai estava. Adeus doce vida. Eu não poderia fugir daquilo. Teria que dar alguma explicação. Diferente de Haruka, eu era uma péssima mentirosa.

Inconscientemente, toquei a cicatriz. Ela era estranhamente fria ao toque, como o corpo de uma pessoa morta. O veio branco percorria o lado direito do meu corpo, das proximidades do umbigo até o começo das costelas.
Era algo simplesmente repugnante de se ver. Encarei Momo por um instante, lembranças dolorosas vindo a tona.

Dei um sorriso, triste. Além de Haruka, aquela era a primeira vez que alguém naquela casa me via sorrir.

- Não somos amigas, mas eu não consigo te ver como inimigo - confessei. Ele iria aprovar as minhas ações? Acho que sim - Apenas me prometa... apenas me prometa que você não vai contar para ele, OK?

Eu levantei a minha mão ensanguentada, o mindinho estendido. Ao perceber esse fato, a troquei pela outra e esperei a menina aperta-lo. Um fogo triste e determinado brilhava em meus olhos.

- Não foi em uma batalha - consegui dizer, apertando os meus braços contra o corpo na tentativa de esconde-la - Mas eu me lembro de todos os rostos. O que mais aparece entre a multidão é o rosto do meu pai.

"Humanos são criaturas idiotas que combatem o medo com a força. Se eles tem medo de algo, precisam mostrar que são mais fortes que isso", expliquei. A minha risada depois disso foi melancólica e sádica. "Se você tem medo de algo, reprima-o. Destrua-o. Seguindo essa lógica, a minha vida três anos atrás era um inferno. Ninguém gosta da morte: antigamente, as pessoas tinham medo de morrer. Agora é vergonha. Ninguém quer se aproximar de um lobo, quem diga um filhote da deusa da morte.
"No inicio, era só uma lasca de vidro. Foi fincada fundo o suficiente para danificar alguns órgãos internos. Eu fui castigada por ser tão fraca, principalmente pelos outros lobos. E então, eu ganhei isso."

Apontei os pontos em que a cicatriz era mais fina, como a de uma espada. Aproximadamente no centro, ela era mais grossa e irregular. Fora ali que tudo começará.
E o restante havia sido feito por Harusame.



- Nada, esquece...

Enquanto Lyon estava sentado na praia, Haruka cavucava a areia molhada com o pé. O meu guardião deveria ser pelo menos dois anos mais velho e quinze centímetros mais alto que Lyon, por mais que fosse parecido com uma menina.

Se eu olhasse para ele naquele instante, comparando os dois... bem, eu nunca havia percebido que o garoto mais velho parecia tão maduro.
Era obvio que ele estava pensando em alguma coisa.

- Haruka... Vamos fazer um trato? - perguntou o outro menino, de repente. Ele se virou, encarando o outro. O sorriso alegre e constante ainda adornava o seu rosto.

- Dependendo do tipo de trato... - ele não chegou a completar a frase, mas deixou aquilo subentendido. Caso lhe agradasse, o que o impediria? Deu os ombros - Por que não?

Those who are no more exist

Afundamos em silêncio.
Eu realmente estava sozinha. Não se aproxime demais de um lobo, pois eles são criaturas astutas e irão te enganar, esse era o senso comum.

Como um lobo, eu só consegui me aproximar de uma criatura igualmente traiçoeira, porém ela deveria ser uma das que mais tinham medo de mim.
Então por que aquela raposa não fugia?

Foi quando reparei que Momo estava chorando. Dei o sorriso mais consolador que eu pude.

- Hey, Deviluke... não, posso te chamar de Momo? Está tudo bem... - era um sorriso falso, mas... eu fui até ela e baguncei de leve seus cabelos, como Haruka fazia comigo as vezes - Não precisa ficar triste. É a minha culpa e somente minha. Ah, droga... eu estou fazendo isso certo?

"Consolar" não fazia parte da minha natureza. "Cace e destrua", "procure e mate", sim. "Proteja-o", talvez. Eu expressava amor de uma maneira estranha que dificilmente era distinguida do ódio.
Se eu era uma criatura possessiva e territorial? Sim. Eu era como um gato. Eu queria que ele tivesse a melhor chance possível, mas também queria que ele olhasse para mim, somente para mim...
Aquilo era algo estranho?

- Vamos trocar a água, então vamos tomar banho juntas! - acho que era aquilo que chamavam de "socializar". Continuei a sorrir e ajudei Momo a sair da banheira, com a mão que não estava cortada.

Não demorou muito para o furô se encher e esquentar de novo. Eu pressionava o corte com papel higiênico e ele havia parado de sangrar.

- M-M-Momo... eu posso te pedir um conselho?



- Vamos fazer assim: Me deixe ficar uma noite com a Takane, e eu te deixo ficar com a Momo por uma noite. O que acha?

- Não é obvio? De jeito nenhum posso aceitar essa troca - a voz de Haruka era tão fria quando o seu olhar. Aquele garoto sorridente que havia segundos atrás... ele havia sumido totalmente. No seu lugar, estava alguém que você sabia que não hesitaria ou pensaria duas vezes antes de exterminar uma ameaça - Takane não é minha para eu usa-la como moeda ou fazer o que bem entender com ela. Se ela concordar com as suas condições, não terei nada contra, mas não tenho o minimo interesse em Deviluke.

Ele lançou um último olhar frio para Lyon. Então assumiu uma postura indiferente, quase descontraída. Mesmo assim, ele ainda era um assassino letal.

- Obrigado pelas negociações, mas elas acabam aqui - anunciou Haruka, se espreguiçando. Havia um sorriso no seu rosto, mas apenas a pessoa que era próxima o suficiente dele poderia perceber as intenções assassinas e a frieza ali - Consegue cozinhar? Eu prometi para Takane que faria curry hoje e, se você e a Momo não gostarem, não sei se consigo fazer dois pratos e acompanhamentos.

Those who are no more exist

- Momo, obrigada! - na realidade, a maior parte do banho fora em silêncio. Apenas agora que estávamos saindo é que eu tomara coragem para falar alguma coisa - Foi a primeira vez que eu tomei banho com alguém assim, como se fossemos amigas e... você não fugiu. Isso me deixou muito feliz!

Me chame de estranha. Em 16 anos, eu tive apenas dois amigos. A primeira havia morrido. O segundo...
Eu não entendia muito bem. A minha arritmia disparava sempre que eu estava perto dele ou falava com ou sobre ele. E mesmo assim, eu queria ficar perto dele.
Que droga de sentimentos eram aqueles?

- Ah! Isso é muito confuso e...! - eu bati na minha testa. Sério...? - Droga. As minhas coisas. Elas estão... lá em baixo.

Eu deveria ser estupida ou algo assim. A ideia de respirar o mesmo ar que o Pheles me enojava tanto que eu havia deixado a minha bagagem lá em baixo.
Ele havia me irritado também, insinuando coisas pervertidas. Eu gostaria de esfregar aquela cara maldita dele no chão da casa do meu pai, que atualmente ostentava o titulo de "Lugar Mais Repugnante do Mundo".

- Momo... desculpa pedir isso... você pode me emprestar... algumas roupas?



- Mentira... Eu sei fazer uma coisinhas sim... - comentou Lyon, em seu próprio jeito irritante de ser. Esnobe. Idiota. De certa forma, ele era parecido com Haruka: todas as características que eu inicialmente antipatizara com ele, sem as que eu viera apreciar.

- Ah, então você pode me ajudar com a comida?

Tradução: o curry que eu cozinhar para a Takane vai ser uma arma potencialmente letal que será disputada por exércitos daqui alguns anos. Se você preza a sua língua, me ajude a preparar mais alguma coisa que não dispute com mapu tofu na escala de "coisas apimentadas".

Não era que Haruka era um cozinheiro ruim. Era simplesmente o fato que eu gostava de comidas apimentadas, enquanto ele não as suportava. Quando eramos mais novos, eu o torturava com isso.

Um trovão cortou o céu.

- Eu não esperava uma tempestade aqui nessa época do ano - ele comentou, distraído. Então foi até a casa, ignorando o Lyon deitado no chão - Não faz muita diferença para mim, mas se ajudar, pergunte para a Takane. Talvez ela concorde com o seu acordo.

Those who are no more exist

- Obrigada - murmurei, vestindo a roupa de Momo. Estávamos no quarto da menina, no primeiro andar. Era a primeira vez que eu entrava no quarto de alguém, daquela maneira.

A camisa ficou extremamente larga no meu busto e o short parecia estar caindo um pouco, mas não me importei.
- O Lyon... - eu a encarei com um olhar assassino, enquanto secava os meus cabelos com uma toalha. A menina ria e sorria - Ele parece bem chato quando você não conhece ele. Na verdade, aquela expressão é a que ele mostrar perto de estranhos, mas com os amigos ele é bem divertido...

- Infelizmente, a simples perspectiva de respirar o mesmo ar que ele me enoja - comentei, irritada. Queria que os meus fones de ouvido estivessem ali - E ele pode ser meu noivo. Estamos destinados a não nos dar bem.

Joguei a toalha em cima da cama e me espreguicei. Meus cabelos negros ainda estavam ligeiramente desgrenhados e molhados, mas estava tudo bem. Eu nunca havia me importado com a minha aparência mesmo, não haveria diferença.
Com Momo atrás de mim, descemos até o andar inferior. Os meninos haviam começado a fazer alguma coisa na cozinha e uma chuva fina caia lá fora.

- Vai piorar - comentei, inconscientemente. Fui até o sofá e examinei a mala por um instante, revirando o seu conteúdo. iPod? Ok. Fones? Ok. Shinigami Ballad? Adorei ver o peso da joia de volta no meu pulso - Haruka, e a comida? Nós não compramos nenhuma?

- Indo! - graças a Deus, o menino havia vestido alguma coisa "descente". Não era um visual muito diferente do usual. Bermuda caqui de padrão quadriculado pequeno substituía a calça que ele costumava usar com o uniforme e uma camiseta verde o suéter da mesma cor. Havia um sujo na sua bochecha, talvez feito por curry que havia espirrado. Era obvio que ele havia se preparado para cozinhar naquela viajem: havia prendido os cabelos com uma bandana branca e usava um avental de cozinha bege - Ah, Ta-chan e... essas roupas... ahn...

- Seu nariz está praticamente sangrando - critiquei. Ele tampou a boca e o nariz com a mão, como se para me impedir de perceber a sua respiração. O menino estava muito vermelho - Desculpa, mas é divertido. Continue.

- A despensa estava cheia, usamos o que tinha aqui - ele soltou o folego prendido. Eu tinha uma expressão divertida nos olhos - O que?

- Ah, desculpa. Me lembrei daquele dia - me desculpei, sorrindo - E então, e a comida?

- Está quase pronta - ele comentou, suspirando e tirando a bandana dos cabelos bagunçados - O curry já está pronto. Estamos esperando o arroz cozinhar.

- Ah, se você tivesse me chamado, eu poderia ter ajudado...
Ambos caímos na gargalhada. Eu ainda estava sorrindo quando Lyon surgiu da cozinha.

Those who are no more exist

Os nossos olhares se cruzaram por alguns segundos. Geralmente, eu estava sempre de péssimo humor, mas agora estava lá: rindo por nenhuma razão de especial, em um ambiente descontraído e com alguns amigos.
Porém quando eu notei que Lyon olhava para mim, a temperatura da sala pareceu cair uns dez graus.

- O-Oi Takane

- Ta-chan, calma... - murmurou Haruka, pegando no meu braço. O calor febril da mão dele pareceu aquecer um pouco a minha raiva fria. Eu simplesmente olhei para Lyon com a cara fechada.

- Não desperdice esse nome - comentei, me livrando do meu guardião. Meu olhar era frio, minha voz cortante - Em situações normais, eu teria te matado aqui e agora, mas ele é melhor que o nojento que você usava antes.

- Takane!

- Mas você concorda comigo, não é!? - ah, agora eu estava irritada com Haruka. Não era nenhuma novidade mas... ele desviou o olhar e eu fiz o mesmo. O clã Enomoto era um inimigo bem conhecido de nós dois. Meus avós eram a única exceção, por terem se afastado da política dos lobos cinzentos a algum tempo e por secretamente nos ajudarem com nossa pequena rebelião.

Eu fui até os sofás e o garoto andou até a cozinha americana, servindo a mesa que havia no centro da sala, previamente preparada para nós quatro. Não havia muita variedade de pratos: curry, arroz e salada resumiam a maior parte do cardápio. Havia também salada de aipo com pedaços de carne, para o caso das duas panelas de curry feitas pelo meu guardião não agradarem o paladar dos convidados.

A refeição começou silenciosa, mas eu me soltava com Haruka lentamente enquanto comia. Quando Momo se juntou também a conversa, eu esbocei um ou outro sorriso. Talvez eu fosse sorrir de fato, se Lyon não estivesse ali.

Aquela atmosfera quente e aquele clima hostil. Eles se chocavam em pleno ar, conflitando. Eu não sabia se ria do fato da bochecha de Haruka estar suja ou se pegava uma faca e partia para cima de Lyon.

Quanto a comida... bem, vou admitir: estava deliciosa, mas eu não disse isso em voz alta. As cenouras que eu odiava estavam raladas e o sabor da carne estava concentrado em cubos desta. Qualquer pessoa despreparada que comesse a comida do meu prato teria, no minimo, uma queimadura séria no esófago de tão apimentado que estava.
Perfeita. Mesmo assim, eu não disse nada disso.

- Mais - pedi, depois de esvaziar o prato pela segunda vez. Haruka tampou a boca, abafando uma gargalhada.

Geralmente, eu repetia apenas uma vez. Ele entendia que ou eu estava com muita fome ou estava muito bom. Ele serviu mais um prato de arroz e curry.
Eu senti um pequeno ardor na minha bochecha, como se uma gota de água quente tivesse caído lá.

- Aqui - disse o menino, brincalhão, me passando o prato. Eu o peguei, então ele pareceu ter reparado em alguma coisa em meu rosto.

- Takane, a sua bochecha está suja...

Those who are no more exist